terça-feira, 9 de março de 2010

Enfrentar o fim da vida. Médicos adiam conversas com doentes terminais
Sem planeamento, os pacientes podem acabar na situação que mais temem: ligados a uma máquina no hospital

"É a conversa que a maioria das pessoas mais teme, sejam médicos ou doentes. O cancro é terminal, resta pouco tempo e aproxima-se o momento de tomar decisões difíceis: aceitar o tratamento ou rejeitá-lo, escolher quando e como morrer.
Quando é a altura certa - se é que existe - para abordar estas questões dolorosas com alguém que tem uma doença terminal?
As linhas de orientação dos médicos estabelecem que a discussão deve começar quando o doente tem um ano ou menos de vida. Desta forma, os doentes e as suas famílias podem planear se querem fazer tudo o que for possível para prolongar o tempo de vida ou preferem evitar ventiladores, ressuscitação, quimioterapia adicional e a parafernália de tubos, agulhas, bombas e as outras máquinas que costumam acompanhar a morte num hospital.
Porém, muitos médicos, principalmente os mais velhos e os especialistas, afirmam que preferem adiar a conversa, segundo um estudo publicado online no jornal "Cancer". Não é inteiramente claro se estes médicos estão a ser negligentes ao não falarem ou se as linhas de orientação são irrealistas. Quando se trata de encarar os doentes e as suas famílias e admitir que tudo estará terminado em breve, que tudo o que a medicina pode oferecer é um pouco de conforto enquanto o doente espera pela morte, os conselhos que soam bem no papel podem não ser adequados às emoções de ambos os lados. Nancy L. Keating, autora principal do estudo e professora associada de Medicina e Política de Cuidados de Saúde de Harvard, admite que se sabe pouco sobre como e quando os médicos têm estas conversas difíceis com doentes terminais. Contudo, avança que há a suspeita de que a comunicação entre médicos e pacientes tem sido deficiente, uma vez que os estudos têm mostrado que, embora a maior parte da pessoas queira morrer em casa, a maioria acaba por morrer no hospital.
Os investigadores questionaram mais de 4 mil médicos que tratavam doentes com cancro, tentando perceber como reagiriam face a um paciente que só tivesse seis meses de vida, mas que ainda se sentisse bem. Quando é que discutiriam o prognóstico? Quando falariam de ressurreição e de cuidados paliativos? Quando perguntariam ao doente onde desejava morrer?
Os resultados foram surpreendentes: os médicos mostraram mais relutância em pôr certas questões do que os investigadores estavam à espera. Embora 65% tivessem dito que falariam sobre o prognóstico "agora", um número bastante menor discutiria as outras questões na mesma altura: ressuscitação, 44%; cuidados paliativos, 26%; local da morte, 21%. A maioria dos médicos disse ainda que preferia esperar até que o doente se sentisse pior ou já não existissem mais tratamentos de cancro para oferecer.
Não lhes foi pedido que justificassem as suas opções, mas Keating avança várias hipóteses: "Talvez não se sintam confortáveis a discutir o assunto", diz. "Estas conversas consomem muito tempo e são difíceis. Alguns médicos podem sentir que os doentes perderão a esperança. É mais fácil dizer 'vamos tentar mais umas sessões de quimioterapia' em vez de ter uma conversa franca." A formação pode também ser um factor, afirma Keating.
As faculdades de Medicina dedicam agora mais tempo às questões do fim de vida do que faziam no passado e a maior predisposição dos médicos jovens para abordar o assunto reflecte essa mudança. Por outro lado, os médicos podem não estar de acordo com as linhas de orientação, que se baseiam em opiniões de especialistas e não em dados.
Daniel Laheru, professor associado do Centro de Cancro Kimmel do Hospital John Hopkins e especialista em cancros do pâncreas e do colo rectal, afirma não ter ficado surpreendido com o estudo. "A tendência natural é não prestar mais informação sobre o assunto que a necessária", garante. "É uma conversa desconfortável e tê-la bem demora muito tempo." Acrescenta: "As pessoas vêm ter connosco com esperança e é muito perturbador se a tiramos imediatamente."
Um diagnóstico terminal, associado à discussão de pormenores macabros - como a possibilidade de ressurreição ou os cuidados paliativos a administrar -, pode ser demasiado para um doente assimilar no mesmo dia. Laheru diz que tenta preparar os doentes, na sua primeira visita, para a ideia de que, durante as visitas posteriores, serão discutidos as diferentes e possíveis opções. "Eles nem sempre ouvem essa parte", adverte.
John Boockvar, neurocirurgião do Centro Médico Presbiteriano de Nova Iorque/Weill Cornell que trata muitos doentes com tumores cerebrais malignos, diz preferir adiar tais discussões para quando o fim está mais próximo. Durante a leucemia do seu próprio pai, já falecido, a sua família ficou perturbada por causa de um oncologista que abordou as questões terminais demasiado cedo, recorda.
"Como doente ou familiar, não sei se teria querido ouvir um médico dizer 'daqui a 18 meses vamos ter de falar da questão dos cuidados paliativos - quer ter essa discussão agora?'" Boockvar questiona: "Não sei se isso traz algum benefício emocional à família. Não acho que isso tenha sido estudado."
Como médico que trata doentes com doenças terminais não hesita quando se trata de discutir o fim da vida. Mas ressalva: "À medida que o fim se aproxima, há habitualmente tempo suficiente para o fazer."
David R. Hilden, médico interno do do Centro Médico Hennepin County de Minneapolis e professor assistente de medicina da Universidade do Minnesota, não tem tanta certeza. "Acho que muitos de nós esperam até restarem apenas algumas semanas de vida e já não haver qualquer escolha", afirma. "Vai acontecer no espaço de uma ou duas semanas, eles estão no hospital e no fim do caminho. O tempo para falar já passou", conclui.
Sem planeamento, alerta Hidden, os doentes terminais podem vir a acabar precisamente na situação que mais temiam, ligados a uma máquina no hospital em vez de estarem confortáveis em casa, nas suas próprias camas.
"Na semana passada, atendi um doente com cancro da próstata e com uma doença cardíaca na última fase, que terá, provavelmente, menos de um ano de vida", conta. "Falei com ele e com a mulher. 'Como quer passar os dias que lhe restam? Que quer que façamos?' Ele e a mulher foram muito receptivos. Muitos doentes apreciam isso. Tivemos uma boa conversa. É mais fácil quando o doente já é idoso e a notícia não é completamente inesperada. Ele tem 86 anos."
O doente disse que não queria tubos ou máquinas, queria apenas estar confortável nos seus últimos meses de vida.
"Estavam em paz com a situação", diz Hilden, acrescentando que muitos doentes que recebem tratamentos agressivos para cancros avançados poderiam, retrospectivamente, ter feito uma escolha diferente.
"Eles podem dizer: 'Depois dos últimos três ou quatro meses de radiação e quimioterapia, sinto-me enjoado, com náuseas, o cabelo caiu e a minha vida não foi prolongada. Poderia não o ter feito se tivesse sabido, se tivesse tido essa hi-pótese.'"
Keating concorda, dizendo que é frequente os doentes optarem por continuar a quimioterapia sem compreender os seus limites.
"Quando dizem 'quero tentar tudo', eles têm em mente 'tudo o que me possa curar'", afirma Keating. "Não compreendem que a sua doença não tem cura."
Apesar das dificuldades, prossegue, os médicos devem ser honestos com os seus doentes.
"Quando sabemos que alguém vai morrer da doença que tem, ajudá-lo a compreender é apenas uma questão de justiça", diz Keating. "Mas estas conversas são grandes desafios. Perceber como fazê-lo bem é um problema muito delicado. E não é, de certeza, algo em que toda a gente acredita."

Exclusivo Jornal I, "The New York Times"

2 comentários:

Artemísia disse...

Este foi um texto que me chamou atenção, pq o meu pai faleceu de cancro no ano passado, e apesar de logo em Nov.2008 nos ter sido logo dito que era uma situação terminal, nunca houve essa "tal" conversa de opção de tratamento, local, decisões relativas a tentativas de ressuscitação ou não..nada. Apenas um palavreado técnico que magoa quem sofre. Aliás, tendo o tumor afectado a capacidade de raciocínio, memória e descernimento do meu pai, houve consultas de comunicação de diagnóstico e tratamento feitas só com ele presente, sem aguardarem pela minha mãe. é o cúmulo do mau tratamento! A humanização da saúde devia ser orbigatória, embora não saiba como se possa humanizar algumas pedras com crachá de médico ao peito!

Maria Lua disse...

Boa tarde Artemísia,

é uma luta muito difícil em Portugal, chama-se Cuidados Paliativos mas ainda está muito longe do que se pratica em outros países, como Inglaterra ou França... Humanização na comunicação, tratamento e assistência quer ao doente, quer à família/amigos.
A morte continua a ser um assunto tabu, onde os governantes não têm muita vontade de investir e mudar o que existe.
É um deserto de solidão e sofrimento para quem passa por essa situação, para quem está perto: família e amigos, e pelos próprios profissionais, muita vezes completamente impotentes de alterarem o percurso da situação.
Um dia, vai ser diferente, temos de acreditar, e a morte, de quem nos é querido ou a nossa, será em casa, rodeado pelos os que mais amamos e de uma forma tranquila.
Os meus sentimentos pela sua perda, que ela seja uma aprendizagem para fazermos mais e melhor, na esperança que nada tenha sido em vão.
Um abraço de amizade.