quinta-feira, 13 de junho de 2013

Santo António por Agustina Bessa-Luís

Santo António de Lisboa, cuja história, durante séculos, resistiu a ser soterrada pelo panegírico e acabou por ser encarada como exercício de eruditos, aparece-nos, a nós os leigos, ora fleumático, ora diáfano. A sensibilidade popular converteu-o num santo fácil e caseiro; nisto veio a dar aquele que, por índole e por carreira, se entregou ao convívio das causas humanas. Santo António foi sobretudo um asceta, o que não quer dizer uma natureza solitária. O asceta, a par da saudade de morrer, anda constante com a paixão da vida. Amou o mundo por algo que era nostalgia da felicidade. E os homens corresponderam-lhe com gratidão, que é amor por quem se afeiçoa às experiências deles, ainda que sem ilusão e familiaridade. Possui o Santo as sete energias instauradas pela inteligência: possui o intelecto individual que participa da eternidade da inteligência e está muito acima do pensamento; possui a verdade; possui a alegria, pois a alegria brota da plenitude do conhecimento; possui a prova apodítica; e também a vida, porque a vida é inseparável da inteligência, e são como mortos os que a ignoram. Possui a perfeição. E o êxtase perante o mundo supersensível. (...)
É de supor que os sermões orais de Santo António fossem dos mais comoventes que foram proferidos por qualquer pregador. A sua raça de homem atlântico de que brumas rodeou o coração? Que amigos conservou no desterro, que fidelidades sentiu na carne e no espírito através dos mares diferentes e dos idiomas diferentes? Em 1263, 32 anos depois da morte do Santo, S. Boaventura, então ministro geral [dos Franciscanos], vem a Pádua para trasladar os restos mortais do taumaturgo para a sua nova basílica. Antes de ser encerrado no seu sepulcro de mármore verde, fez-se o reconhecimento dos despojos. O corpo tinha-se tornado em pó; e disseram que só a língua continuava viva, símbolo da força da sua palavra e da incorrupta natureza do seu espírito. (...)
A sua cultura humanista e clássica está demonstrada nos seus textos. A linguagem é estudada e a expressão, muitas vezes, além de erudita, é dramática e é poética. Temos disso um exemplo no belíssimo passo que diz: «Se a rola perder a companheira, dela carecerá sempre; caminha sozinha e vagabunda, não bebe água clara, não sobe a ramo verde. Por seu lado, a pomba é simples, tem um ninho mais áspero e pobre do que as demais aves, não fere a ninguém com o bico ou com as unhas, não vive da rapina...». «Não bebe água clara, não sobe a ramo verde.» A correção do ritmo é acompanhada pela doçura da imagem. Os jogos de palavras, os paralelismos, as antíteses, os recursos da improvisação imagística, a elegância da metáfora, a vivacidade das apóstrofes, tudo isso faz de Santo António um grande escritor medievo.
«A abelha pequena trabalha mais, tem quatro asas subtis e a sua cor é negra e como que queimada.» Assim começa o pregador a conduzir a atenção dos seus ouvintes; e quando eles se aplicam em segui-lo, interessados no quadro naturalista que se desenrola, eis que outras situações lhes são mostradas e que o campo espiritual se lhes descobre. Quem não conhece a abelha operosa e escura? E as flores do salgueiro de que ela se alimenta, quem nunca as viu? O vento forte que sopra nas vinhas desde Pádua a Verona, todos os sentiram no inverno, esse inverno do norte que não é difícil comparar à adversidade. Há um acento na voz sonora que é inesquecível, quando ele descreve o que o coração envia ao pensamento.
A multidão ouve suspensa aquele homem pequeno, de cabelos brancos. É consolador tudo quanto ele diz, seguem-no, admiram-no, esperam dele coisas surpreendentes, embora não o compreendam algumas vezes. Mas ele sabe como fazer perdoar a sua erudição. «Assim como a flor quando espalha o perfume não se corrompe, também o verdadeiro humilde não se eleva quando louvado.» Louvam-no, não unicamente porque a sua língua bendita exalta o Senhor, mas porque ele opera nas almas uma estranha mudança; é uma espécie de expetativa que se introduz nas suas vidas. De que fala o Santo? Sossega-os nos seus lamentos, dá satisfação às suas opressões, anima-os nas suas guerras, resgata-os das suas dívidas, sustenta-os nas sua formes. É um pai amorável, embora evangelize às vezes de maneira sentenciosa. E é também um doutor capaz de se exprimir diante dos letrados. (...) «O casto afeto acompanhado de seriedade» - eis como ele se apresenta. A candura reveste-o e o povo ama o que nele é a própria deliberação de Deus.

Agustina Bessa-Luís
in Santo António, Guimarães Editores (1971-1973)

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